CONTO

Marcas da Vida

sábado, janeiro 31, 2015 Paralelo das Letras 0 Comments

As flores roxas ao redor da estrada traziam a sua mente um filme que virá com os primos no cinema a alguns anos,  e isso lhe trazia uma sensação nostálgica que de alguma forma aquecia o coração.  Era a lembrança de uma parte boa de sua vida,  na infância,  onde para um dia ser bom bastava que estivesse rodeada dos primos e amigos, assim como saber que os pais estavam a esperando em casa para lhe abraçar quando chegasse de uma das aventuras com os amigos. Ela recordou que no filme chamavam as flores roxas de "flores de Mabel"  ou algo assim. Era mesmo apenas uma boa lembrança invocada por uma coisa simples,  mas que não trazia seus personagens de volta. Ela tinha quase certeza que com algum esforço ela poderia reencontrar os primos e amigos que ficaram em sua cidade Natal,  no entanto os pais já não poderiam mais abraça-la, não depois de um terrível acidente ter os levado para de onde não podiam mais voltar,  ou ver a filha se tornar uma mulher. E isso era o que mais doía em seu passado,  afinal ela estava com os pais no carro quando o caminhão desgovernado com um seu motorista bêbado tinha arrastado o carro da família por mais de duzentos metros até encontrar um muro e esmagar seus pais contra ele. Ela que estava no Banco traseiro ficou muito ferida,  ficou na U. T. I por quase dois meses,  mas sobreviveu e desde então a quatro anos ela mora com seus tios paternos no interior de São Paulo. Quando teve de escolher entre quais dos tios queria morar,  mesmo estando de luto,  não foi difícil escolher pelos tios Marcelo e Luiza,  eles eram seus padrinhos,  tios mais próximos e pais de Estela, sua prima e melhor amiga.  O seu dia de chegada na casa dos tios,  como moradora,  jamais vai sair de sua memória.  A casa era um bonito e aconchegante sobrado em um condomínio de Marília,  e ela já estivera ali inúmeras vezes em visitas a família,  mas entrar pela porta e ouvir a tia dizer que ela era bem vinda a sua nova casa,  deu uma vontade tão grande de chorar e  correr dali,  afinal ela tinha uma casa,  um lar em São Paulo,  era um sobrado mas não aquele. Ingrid sabia que tios seriam sempre bons com ela e tratariam ela como uma filha e Estela sempre fora como uma irmã para ela. Mas ela não conseguia conter as lágrimas,  que pareciam nascer no coração e consumir todo seu corpo. Os tios e a prima a abraçaram e os quatro ficaram ali juntos por muito tempo,  e assim ela soube que na vida podemos ter dois lares,  na época ela tinha quartoze anos e os tios ficaram como tutores dela e de sua herança,  mas deixaram ela opinar sobre muitas decisões. Foi ela que decidiu não vender ou alugar a casa onde nasceu e cresceu ao lado dos pais,  e mais tarde também decidiu emprestar para o primo Augusto assim ele poderia estudar na capital sem ter que gastar com aluguel e cuidaria da casa para ela. Cada instante de sua vida em família estava bem gravado em sua memória.  Naquela tarde dirigindo pela estrada margeada por ipês e flores roxas ela recordava muitos destes momentos vividamente. No entanto eles já não doíam como na época da partida dos pais,  agora eram incrivelmente agradáveis e reconfortantes. 

As marcas que ficam em nós devido a nossas experiências de vida são mais fortes que muitas vezes imaginamos.  Ingrid nunca se iludiu que estas coisas não a influenciavam cada decisão que ela tomou em sua vida.  Mesmo a última e mais importante que fez com que ela estivesse na estrada em sua SUV indo para a segunda etapa da sua vida. Ela não sabia se sua vida adulta que se iniciava com a ida para a Universidade em São Carlos ia ser como havia planejado em conjunto com a prima que já cursava Arquitetura,  mas tinha certeza que poderia fazer muito do que tinha sido preparada para fazer em seu futuro.  E se por acaso os planos do destino fossem diferentes dos dela,  então mais uma vez ela teria a chance de mostrar sua força e resiliência diante das provações. Afinal a vida tende mesmo a ser uma caixinha de surpresas.

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